Transcrição literal da sentença do juiz federal Antônio Francisco Pereira, titular da 8ª Vara da Seção Judiciária de Minas Gerais. A decisão versa sobre ação do DNER contra um grupo de sem-terra que ocupou as margens de uma rodovia. Com orientação jurídica alternativista, a sentença, verbalmente despojada, mantém os sem-terra na posse da terra ocupada, doa a quem doer.
"VISTOS etc.
"Não tinham pressa em chegar, porque não sabiam aonde iam.Expulsos do seu paraíso por espadas de fogo,iam, ao acaso, em descaminhos, no arrastão dos maus fados. Não tinham sexo, nem idade, nem condição humana.Eram os retirantes. Nada mais."
(José Américo de Almeida, em "A Bagaceira")
Várias famílias (aproximadamente 300 - fls. 10) invadiram uma faixa de domínio ao lado da Rodovia BR 116, na altura do km 405,3, lá construindo barracos de plástico preto, alguns de adobe, e agora o DNER quer expulsá-los do local.
"Os réus são indigentes", reconhece a autarquia, que pede reintegração liminar na posse do imóvel.
E aqui estou eu, com o destino de centenas de miseráveis nas mãos. São os excluídos, de que nos fala a Campanha da Fraternidade deste ano.
Repito, isto não é ficção. É um processo. Não estou lendo Graciliano Ramos, José Lins do Rego ou José do Patrocínio.
Os personagens existem de fato. E incomodam muita gente, embora deles nem se saiba direito o nome. É Valdico, José Maria, Gilmar, João Leite (João Leite ???). Só isso para identificá-los. Mais nada. Profissão, estado civil (CPC, artigo 282, II) para quê, se indigentes já é qualificação bastante ?
Ora, é muita inocência do DNER se pensa que eu vou desalojar este pessoal, com a ajuda da polícia, de seu moquiços, em nome de uma mal arrevesada segurança nas vias públicas. O autor esclarece que quer proteger a vida dos próprios invasores, sujeitos a atropelamento.
Grande opção! Livra-os da morte sob as rodas de uma carreta e arroja-os para a morte sob o relento e as forças da natureza.
Não seria pelo menos mais digno - e menos falaz - deixar que eles mesmos escolhessem a maneira de morrer, já que não lhes foi dado optar pela forma de vida?
O Município foge à responsabilidade " por falta de recursos e meios de acomodações " (fls. 16 v).
Daí, esta brilhante solução: aplicar a lei.
Só que, quando a lei regula as ações possessórias, mandando defenestrar os invasores (artigos 920 e seguintes do CPC), ela - COMO TODA LEI - tem em mira o homem comum, o cidadão médio, que, no caso, tendo outras opções de vida e de moradia diante de si, prefere assenhorar-se do que não é de le, por esperteza, conveniência, ou qualquer outro motivo que mereça a censura da lei e, sobretudo, repugne a consciência e o sentido do justo que os seres da mesma espécie possuem.
Mas este não é o caso no presente processo. Não estamos diante de pessoas comuns, que tivessem recebido do Poder Público razoáveis oportunidades de trabalho e de sobrevivência digna (v. fotografias).
Não. Os "invasores" (propositadamente entre aspas) definitivamente não são pessoas comuns, como não são milhares de outras que "habitam" as pontes viadutos e até redes de esgoto de nossas cidades. São párias da sociedade (hoje chamados excluídos, ontem de descamisados), resultado do perverso modelo econômico adotado pelo país.
Contra este exército de excluídos, o Estado (aqui, através do DNER) não pode exigir a rigorosa aplicação da lei (no caso, reintegração de posse), enquanto ele próprio - o Estado - não se desincumbir, pelo menos razoavelmente, da tarefa que lhe reservou a Lei Maior.
Ou seja, enquanto não construir - ou pelo menos esboçar - "uma sociedade livre, justa e solidária" (CF, artigo 3º, I), erradicando "a pobreza e a marginalização" (n. III), promovendo "a dignidade da pessoa humana" (artigo 1º, III), assegurando "a todos existência digna, conforme os ditames da Justiça Social" (artigo 170), emprestando à propriedade sua "função social" (art. 5º, XXIII, e 170, III), dando à família, base da sociedade, "especial proteção" (art. 226), e colocando a criança e o adolescente "a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, maldade e opressão" (art. 227), enquanto não fizer isso, elevando os marginalizados à condição de cidadãos comuns, pessoas normais, aptas a exercerem sua cidadania, o Estado não tem autoridade para deles exigir - diretamente ou pelo braço da Justiça - o reto cumprimento da lei.
Num dos braços a Justiça empunha a espada, é verdade, o que serviu de estímulo a que o Estado viesse hoje a pedir a reintegração. Só que, no outro, ela sustenta a balança, em que pesa o direito. E as duas - lembrou RUDOLF VON IHERING há mais de 200 anos - hão de trabalhar em harmonia:
"A espada sem a balança é força brutal; a balança sem a espada é a impotência do direito. Uma não pode avançar sem a outra, nem haverá ordem jurídica perfeita sem que a energia com que a justiça aplica a espada seja igual à habilidade com que maneja a balança"
"A espada sem a balança é força brutal; a balança sem a espada é a impotência do direito. Uma não pode avançar sem a outra, nem haverá ordem jurídica perfeita sem que a energia com que a justiça aplica a espada seja igual à habilidade com que maneja a balança"
Não é demais observar que o compromisso do Estado para com o cidadão funda-se em princípios, que têm matriz constitucional. Verdadeiros dogmas, de cuja fiel observância dependem a eficácia e a exigibilidade das leis menores.
Se assim é - vou repetir o raciocínio - enquanto o Estado não cumprir a sua parte (e não é por falta de tributos que deixará de fazê-lo), dando ao cidadão condições de cumprir a lei, feita para o homem comum, não pode de forma alguma exigir que ela seja observada, muito menos pelo homem "incomum".
Mais do que deslealdade, trata-se de pretensão moral e juridicamente impossível, a conduzir - quando feita perante o Judiciário - ao indeferimento da inicial e extinção do processo, o que ora decreto nos moldes dos artigos 267, I e VI; 295, I, e parágrafo único, III, do Código de Processo Civil, atento à recomendação do artigo 5º da LICCB e olhos postos no artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, que proclama: "Todo ser humano tem direito a um nível de vida adequado, que lhe assegure, assim como à sua família, a saúde e o bem estar e, em especial, a alimentação, o vestuário e a moradia ".
Quanto ao risco de acidentes na área, parece-me oportuno que o DNER sinalize convenientemente a rodovia, nas imediações. Devendo ainda exercer um policiamento preventivo a fim de evitar novas "invasões".
P. R. I.
Belo Horizonte, 03 de março de 1995
ANTONIO FRANCISCO PEREIRA
Juiz Federal da 8ª Vara
Juiz Federal da 8ª Vara
5 comentários:
Quando lemos uma sentença de um juiz de direito proferindo decisões que vão além da mera aplicação de leis, que se utiliza de uma análise conjuntural do problema em questão para melhor interpretar a norma jurídica, adequando-a a realidade social, temos que admitir que esse é um posicionamento muito louvável.
O direito é uma ciência que estuda a conduta humana interpretada por normas jurídicas. Tudo que é humano, como sabemos, é de difícil mensuração, não é estável e perfeito. Por isso, os fatos jurídicos não podem ser resolvidos apenas fazendo-se cumprir a norma jurídica positivada. A norma de decisão, ou seja, a sentença enunciada pelo juiz, permite que seja dada uma maior concretude a norma, isto é, quando a lei sai do papel e passa a valer para a vida real.
Entretanto, ao passar uma imagem de orientação jurídica alternativa, não podemos nos deixar enganar pelo discurso poético que tal juiz em análise utilizou ao proclamar sua sentença. Podemos dizer que sua visão foi um tanto quanto ingênua da realidade social. Afinal, o tema em questão é bem mais complexo do que parece a primeira vista.
Em nenhum momento ele coloca como questão central de sua sentença a problemática da reforma agrária no país, que não podemos nos esquecer, é histórica. Desde o descobrimento do Brasil, o critério para a distribuição de terras aconteceu por meio do poder econômico, político e social que possuíam os indivíduos. No decorrer dos anos, essas propriedades foram sendo repassadas de geração a geração formando grandes latifúndios e, hoje, as famílias que reivindicam por um pedaço de terra, são aquelas que sempre trabalharam para os latifundiários e que, devido à mecanização do campo, foram obrigadas a se retirar para os grandes centros urbanos em busca da sobrevivência. Contudo, as condições de vida possibilitadas pelas grandes cidades foram desumanas, fazendo com essas famílias passassem a lutar por aquilo que sempre souberam fazer, labutar na terra. Deixemos de lado os exemplos de oportunistas que ingressam em movimentos em busca de terra e fiquemos apenas com os casos de famílias que realmente querem se estabelecer como pequenos proprietários, decorrentes de sua história de vida.
O juiz de direito apenas cita os artigos. 5º, XXIII, e 170, III, da Constituição de Federal, que abordam sobre a função social da propriedade, parecendo esquecer que o sistema constitucional é uma previsão para um país ideal, que é uma norma prospectiva de mudança da sociedade. Será que com tal posicionamento, ele espera que o Estado cumpra rapidamente com sua parte? Mas me parece como uma atitude de “lavar as mãos” – ele, enquanto juiz de direito, não retira aquelas famílias do local da invasão, fazendo valer seus direitos de reivindicação, e coloca para o Estado a responsabilidade de resolver o problema histórico de redistribuição de terra do país. Mas não podemos nos esquecer que estamos inseridos numa sociedade que adota o sistema de produção capitalista e segue o pensamento político neoliberal, no qual reprodução das desigualdades sociais faz parte na manutenção desse sistema. Quantos anos mais essas famílias irão ali permanecer, sendo realmente renegadas do sistema político, econômico, cultural e social do país? Onde elas se encontram, poderíamos dizer que é terra de ninguém; se ali permanecerem, não irão incomodar, apenas “enfeitarão” a paisagem da rodovia; a principio causará estranheza por quem ali trafega, mas posteriormente se tornará uma cena comum.
Durante sua argumentação, ele enfatiza o problema daquelas famílias como sendo uma simples questão de moradia, deixando transparecer sua visão limitada característica de sua posição social classista. Ele começa a sentença argumentando de forma coerente, dizendo que essas pessoas não podem ser comparadas a cidadãos comuns, pois são os excluídos do sistema. Mas, seu discurso torna-se contraditório ao apresentar como solução para essas famílias a questão da moradia, que seria voltada para cidadãos comuns, como ele tanto quis diferenciar – cidadãos comuns (aqueles com opção de escolha por moradias) e cidadãos incomuns (os que não têm outras opções de vida e de moradia).
O problema dessas famílias é terra. Não estão ali por uma casa apenas, mas por um chão de terra que servirá para a sua subsistência e também onde irão produzir os produtos que serão comercializados e, com isso, irão obter os recursos para o seu próprio sustento. Não que a moradia não atende as necessidades básicas de uma família, mas o objetivo do movimento a que pertencem procura por algo a mais.
Se fosse apenas questão de moradia, o juiz poderia exigir do poder público, a facilidade de acesso dessas famílias em programas de casas populares, bem com em programas sociais do governo. Mas o caso não se encerra apenas nisso.
Consentindo que essas famílias permaneçam na terra que invadiram, volta a repetir, somente servirá para esconder o “problema”, pois os políticos que podem realmente resolver tal situação, muitas vezes não irão passar por aquela rodovia e se sensibilizar com a problemática, pois muitos deles viajam de avião.
O juiz poderia ter usado a sua competência para exigir da União as medidas necessárias, como a avaliação das terras próximas que não estão produtivas e assim realizar a redistribuição de terra. Os municípios próximos da invasão não podem arcar com problemas estruturais do país, pois terão seus gastos na área social aumentados, mas não terão aumento de repasses governamentais e arrecadações para investir dignamente em melhores condições de vida e moradia a esses cidadãos, pois muitas famílias que ali se encontram não são da localidade, vem de diversas regiões do país. Os municípios podem facilitar o acesso dessas famílias em programas e políticas municipais, mas a questão da terra é algo nacional.
O posicionamento do juiz de direito foi plausível. Entretanto, os juizes devem tomar cuidado com as sentenças “alternativas” que anunciam, pois, além de possuírem uma visão distorcida da realidade social, muitos outros magistrados, diante de situações similares que a norma não contempla, irão se nortear e proferir suas decisões com base na mesma linha de raciocínio do referido juiz. Imaginemos os casos de invasão em fundos de vale, áreas ambientalmente protegidas... O pensamento utilizado pelo juiz apenas mantém as coisas nos mesmos patamares, não progride socialmente, não simboliza uma conquista social.
Os conflitos fundiários estão cada vez mais comuns e violentos e consequentemente o poder judiciário é provocado para que tente resolver estes conflitos, porém, tais conflitos podem ser mais complexos do que parecem e encontrar uma solução que agrade a todas as partes envolvidas e não fuja do texto legal está cada vez mais difícil.
Diante da simples descrição deste antigo problema de nossa sociedade analisarei com maior profundidade a decisão de um juiz federal da 8º vara da seção de Minas Gerais, que traz em sua sentença bons argumentos que defendem a permanência de um grupo de sem-terras que ocuparam às margens de uma rodovia, ocupação esta que vem sendo questionada pelo Estado.
Não devemos olvidar de que não estamos tratando de coisas e sim de pessoas com dignidade e direitos. Direitos que são garantidos pelo Estado, mas que muitas vezes não são usufruídos por todos de maneira igualitária. Portanto, tendo em vista esta sociedade desigualitária em que vivemos o Estado não poderia obrigar que os cidadãos cumprissem seus deveres já que não garante com que os seus direitos sejam respeitados. Assim, concluo que enquanto o Estado não proporcionar acesso as garantias preestabelecidas por ele mesmo não poderá exigir que os cidadãos cumpram com os seus deveres, pois, não possuem condições mínimas necessárias para isso.
Por outro lado, também está entre os direitos do cidadão ou do próprio Estado ter a sua propriedade inviolada e por mais injusto que isto possa parecer faz-se necessário que o Estado, por meio de seu poder coercitivo, garanta a inviolabilidade da propriedade de cada indivíduo, pois, se diferente fosse entraríamos em um estado de conflitos generalizados.
Portanto, concordo que seja necessário que o poder judiciário atue de maneira mais humanística tentando diminuir as diferenças sociais tão comuns em um Estado que está longe do que imaginamos de algo ideal. Porém, cabe ao juiz ter bastante precaução ao analisar as verdadeiras necessidades destes grupos, pois, algumas vezes estes se aproveitam da condição em que estão inseridos na sociedade para se aproveitarem da mesma com o fim de enriquecer ilicitamente.
Por fim, acredito que o juiz não está errado em usar de seu poder para garantir que aquelas famílias não sejam “jogadas” ao mundo novamente, porém, não chegaremos ao que imaginemos ser um estado ideal se garantirmos que os direitos de alguns interfiram nos direitos de outros – ainda que nos pareça injusto - portanto, proponho que ao Estado seja garantido o direito a posse de suas respectivas terras invadidas, mas que o mesmo Estado seja compelido a dar a estas famílias as condições de vida que necessitam.
Trabalho feito pelo aluno Izique Zar de Rezende do primeiro semestre do curso de direito diurno da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul.
No Brasil, o modelo de colonização contribuiu para a perpetuação de um sistema fundiário baseado na grande propriedade, afinal, o início da colonização do Brasil se deu através da concessão de grandes latifúndios no nordeste do país (as Capitanias Hereditárias e as Sesmarias) e o processo de criação dos latifúndios apenas aumentou com a vinda de diversos imigrantes ao Brasil e a mecanização da agricultura principalmente durante o período da Ditadura Militar. Desde 1962 varias iniciativas em favor da reforma agrária foram realizadas. Considera como Reforma Agrária o conjunto de medidas que visam promover uma melhor distribuição de terra, mediante modificações no regime de sua posse e uso, a fim de atender aos princípios de justiça social e ao aumento da produtividade no campo, entretanto, não é essa a realidade que vemos nos dias atuais. Grande parte das propriedades estão nas mãos de poucas pessoas enquanto a maiorias das pessoas vivem em situação de pobreza absoluta, são centenas de famílias desabrigadas e jogadas a margem da sociedade.
Sou favorável a sentença do juiz Antonio Francisco Pereira pois o Estado não pode exigir nada dessas pessoas enquanto não respeitar os seus direitos de cidadãos brasileiros, enquanto não proporcionar a essas famílias a possibilidade de uma vida digna e ainda acrescento que a Reforma Agrária no país, sendo sabia e moderada, será uma das causas principais do progresso nacional, pois ela não é contra a propriedade privada no campo, ao contrario disso, descentraliza-a democraticamente favorecendo as massas e beneficiando o conjunto da Nacionalidade, é um imperativo da realidade social atual, devendo atender a função social da propriedade, evitando assim tensões e conflitos como esse entre o MST e o DNER. Essas pessoas, contudo, realmente não deveriam ficar as margens da rodovia por questões de segurança, desde que o Estado garantisse a elas o direito de construir uma casa em um local seguro e produzissem seu próprio alimento em sua propriedade.
Aluna: Jessica Gomes, 1º Ano, matutino; Direito - (UFMS).
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