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O conceito de Assistência Jurídica Integral e Gratuita
Para o acesso à ordem jurídica, o Estado disponibiliza, como atividade de
assistência aos jurisdicionados que não dispõem de recursos financeiros ou
condições materiais aptas a salvaguardar seus direitos, os institutos da
“justiça gratuita”, da “assistência judiciária gratuita” e da “assistência
jurídica integral e gratuita”.
Embora haja semelhança terminológica entre as expressões e o fato de
alguns doutrinadores, legisladores e, até mesmo, magistrados utilizarem
referidas expressões como sinônimas, referidos institutos jurídicos são
distintos e o uso terminológico tomado indistintamente é equívoco.
É possível afirmar que o instituto da “justiça gratuita” está contido no
da “assistência judiciária gratuita”, que por sua vez são abrangidos pela
“assistência jurídica integral e gratuita”. Contudo, o fato de um instituto
estar contido no outro não implica tratá-los como sinônimos, visto que, embora
tendo o mesmo objeto, possuem amplitude diversa. É perfeitamente possível a
concessão dos benefícios de um instituto negando-se a concessão de outro, ou
seja, é possível que um jurisdicionado obtenha a concessão dos benefícios da
“justiça gratuita” e, no entanto, lhe serem negados os benefícios da
“assistência jurídica integral e gratuita”.
Essa distinção não é meramente acadêmica. As dessemelhanças dos
institutos já foram observadas até mesmo pelos Tribunais Superiores do nosso
país. É necessário destacar que, antes mesmo da positivação do direito à
“assistência jurídica integral e gratuita” pela vigente Constituição Federal
brasileira, quando ocorreu o I Seminário Nacional sobre Assistência Judiciária,
realizado em novembro de 1981, por meio da conclusão n.º XIX da Carta do Rio de
Janeiro, que se encontra publicada na Revista da Ordem dos Advogados do Brasil
da Secção daquele Estado, foi recomendada naquele seminário, às autoridades
competentes, a cautela na utilização indistinta das expressões destinadas a
identificar os serviços de assistência jurídica prestada pelo Estado aos
jurisdicionados economicamente hipossuficientes.
1.1 Justiça Gratuita
A “justiça gratuita”, também denominada como “gratuidade da justiça”, ou,
com melhor acepção, “gratuidade judiciária”, que a nosso ver expressaria com
maior propriedade o instituto jurídico em questão, consiste, tão-somente, na
dispensa provisória do pagamento de custas, taxas e despesas judiciais,
cobradas para movimentação da prestação da tutela jurisdicional do Estado,
limitando-se, portanto, exclusivamente ao processo.
As dispensas do pagamento de custas, taxas e despesas judiciais, como foi
dito, são provisórias, pois o beneficiário da “gratuidade da justiça” ficará
obrigado a ressarci-las ao Cartório Judicial, ou ao Estado (tratando-se de
cartório oficial), ou àquele que as desembolsou, se suas condições financeiras
permitirem fazê-lo, sem o prejuízo do seu sustento e o de sua família. No
entanto, após o trânsito em julgado da sentença ou acórdão, decorrido o prazo
de 5 (cinco) anos sem que haja a alteração do estado de fortuna do
beneficiário, este estará isento do pagamento em decorrência da operação da
prescrição.
1.2 Assistência Judiciária Gratuita
O instituto jurídico da “assistência judiciária gratuita” consiste no
benefício, concedido ao necessitado, de, gratuitamente, utilizar os serviços
profissionais de advogado e demais auxiliares da justiça, inclusive peritos,
para a defesa de sua pretensão, tão-somente em juízo, e de despesas que não se
exaurem no processo, principalmente aquelas geradas em decorrência do seu
desfecho.
Assim, a “assistência judiciária gratuita” constitui um benefício mais
amplo que o da “gratuidade judiciária”. Além da dispensa do pagamento de
custas, taxas e despesas judiciais, cobradas para movimentação da prestação da
tutela jurisdicional do Estado, esta isenta o beneficiário do pagamento dos
honorários do advogado que lhe irá assistir em juízo e dos demais auxiliares da
justiça. Ou seja, não se trata de simples dispensa provisória, mas real
isenção, sem obrigação de restituição. Também lhe é concedida a dispensa
provisória do pagamento dos honorários do advogado da parte contrária, caso
venha a sucumbir em sua pretensão, tendo o condão de prover as despesas que não
se exaurem no processo, como a averbação de sentenças e atos que tenham de
servir ao conhecimento da justiça e da população, que se fazem por meio de
Certidões de Registros Públicos.
A “assistência Judiciária gratuita” constitui-se, portanto, em serviço
público organizado, que deve ser oferecido pelo Estado, mas que pode ser
desempenhado por entidades não-estatais, conveniadas ou não com o Poder
Público.
1.3 Assistência Jurídica Integral e
Gratuita
Este instituto nasceu com o advento da vigente Constituição Federal
brasileira, que, sem sombra de dúvidas, proporcionou uma evolução significativa
dos mecanismos de acesso à ordem jurídica e na ampliação do dever do Estado em
propiciá-la. Desta forma, a assistência jurídica integral e gratuita tornou-se
um instrumento imprescindível à consecução deste objetivo.
Assim, para o novo instituto que foi introduzido no ordenamento jurídico
brasileiro por meio da vigente Constituição Federal, é necessário construir um
conceito em consonância com as necessidades de nossa complexa sociedade e com
os princípios constitucionais promulgados em 5 de outubro de 1988, devendo
proporcionar a absolutamente todos que dele necessitem o acesso aos direitos
consagrados naquela Carta Política. Exige-se um conceito realmente evoluído,
atento à realidade social, ao espírito democrático e à concepção de Estado
Democrático de Direito.
A tarefa de construção do conceito de Assistência Jurídica Integral e
Gratuita coube aos agentes do direito, visto que os constituintes não o
definiram, tampouco o fizeram por meio de legislação infraconstitucional. É
importante destacar que os agentes do direito exercem atividade de fundamental
importância no processo de construção do Direito e da edificação de Doutrinas.
Não olvidando que os ensinamentos dos professores, os pareceres dos
jurisconsultos, as opiniões dos tratadistas têm ainda o condão de exercer
relevante influência na legislação e na jurisprudência e, consequentemente, na
aplicação do direito.
Conforme ponderações de Maria Helena Diniz: "tem razão Alexandre
Caballero ao afirmar que ‘é um fenômeno normal o da evolução dos conceitos,
mesmo dos mais elementares e fundamentais. Quanto mais manuseada uma ideia,
mais ela fica revestida de minuciosos acréscimos, sempre procurando os
pensadores, maior penetração, maior exatidão, maior clareza".[1]
Antes da formulação de um conceito, é indiscutível a necessidade de se
compreender o que venha a ser conceito.
Plácido e Silva nos dá o enfoque jurídico da terminologia com as
seguintes observações: "Derivado de conceptus,
de concipere (conceber, ter idéia,
considerar), serve na terminologia jurídica para indicar o sentido, a
significação, a interpretação, que se tem a respeito das coisas, dos fatos e
das palavras. O conceito da palavra indica, precisamente, o sentido etimológico
e técnico em que é ela aplicada. É o certo entendimento que se possui a seu
respeito, na posição em que se põe na linguagem. O conceito legal expressa o
pensamento do texto no seu entendimento mais justo e mais consentâneo com o
caso concreto. O conceito, pois, assinala a definição de qualquer coisa ou a
exata compreensão de seu sentido”.[2]
A mesma autora aponta ainda a lição de Lourival Vilanova, asseverando que
"o conceito não reproduz o objeto, por isso não fica no mesmo plano
ontológico dele. A natureza do conceito permanece intacta, qualquer que seja a
índole de seu correlato objeto, ou seja, real, ideal etc. Em qualquer caso, a
idealidade do conceito persevera a mesma. O objeto é o dado envolvido pela
forma conceitual, é aquilo que o pensamento delimita. Sob o prisma ontológico o
conceito é um objeto ideal e o dado pode ser um objeto natural ou até mesmo
ideal. O dado tem propriedades, caracteres, e o conceito é constituído de notas,
que correspondem aos caracteres do objeto. O conceito retém, apenas, o elemento
comum, a essência que em toda multiplicidade se encontra; logo, não poderia ser
uma duplicação, uma reprodução do
real, do objeto, uma vez que funciona como um princípio de simplificação, tendo
função seletiva."[3]
Pelo exposto, tem-se em mente que a ideia de um objeto se constrói também
pela interpretação dos atos e fatos que envolvem aquele objeto. Em se tratando
de um objeto jurídico, a hermenêutica assume um papel fundamental na elaboração
do seu conceito.
Neste sentido, é Carlos Maximiliano quem aponta o norte ao hermeneuta no
ardoroso trabalho de análise do ordenamento, ensinando: "107 - Cumpre
evitar, não só o demasiado apego à letra dos dispositivos, como também o excesso
contrário, o de forçar a exegese e deste modo encaixar na regra escrita, graças
à fantasia do hermeneuta, as teses pelas quais este se apaixonou, de sorte que
vislumbra no texto ideias apenas existentes no próprio cérebro, ou no sentir
individual, desvairado por ojerizas e pendores, entusiasmos e preconceitos. ‘A
interpretação deve ser objetiva, desapaixonada, equilibrada, às vezes
audaciosa, porém não revolucionária, aguda, mas sempre atenta respeitadora da
lei’."[4] Mais
adiante, continua: "111 - Deve o intérprete, acima de tudo, desconfiar de
si, pensar bem as razões pró e contra, e verificar, esmeradamente, se é a
verdadeira justiça, ou são ideias preconcebidas que o inclinam neste ou naquele
sentido. ‘Conhece-te a ti mesmo’ – preceituava o filósofo ateniense. Pode-se
repetir o conselho, porém completado assim: – ‘e desconfia de ti, quando for
mister compreender e aplicar o Direito’." [5]
Ante as lições acima, cumpre-nos, antes de delinear o conceito de
assistência jurídica integral e gratuita, apontar a ideia de referido instituto
na doutrina para avaliar possíveis erros e acertos, no intuito de construir um
conceito que mais se aproxima da realidade, advinda da positivação de direitos
elevados à garantia constitucional pela vigente Constituição Federal brasileira.
Pinto Ferreira expõe que "O direito à assistência jurídica ou
judiciária é um direito público subjetivo outorgado pela Constituição e pela
lei a toda pessoa cuja situação econômica não lhe permita pagar as custas
processuais e os honorários de advogado, sem prejuízo para o sustento de sua
família ou de si própria."[6]
Não é raro encontrar a utilização de forma equivocada das expressões
“justiça gratuita”, “assistência judiciária gratuita” e “assistência jurídica
integral e gratuita” como sinônimas. [7]
Referido equívoco foi constatado também por Augusto Tavares Rosa Marcacini, que
apontou: "Os conceitos de justiça gratuita e de assistência judiciária são
comumente utilizados como sinônimos, sem que, na verdade, o sejam. Como bem
anota José Roberto de Castro, o equívoco tem origem nos próprios textos
legislativos, que empregam as duas expressões indistintamente, como se tivessem
o mesmo significado. A Lei n. 1.060/50 utiliza diversas vezes a expressão
assistência judiciária ao referir-se, na verdade, à justiça gratuita."[8]
Pontes de Miranda se manifesta nos seguintes termos: “Assistência
judiciária e benefício da justiça gratuita não são a mesma coisa. O benefício
da justiça gratuita é direito à dispensa provisória de despesas, exercível em
relação jurídica processual, perante o juiz que promete a prestação
jurisdicional. É instituto de direito pré-processual. A assistência judiciária
é a organização estatal, ou paraestatal, que tem por fim, ao lado da dispensa
provisória das despesas, a indicação de advogado. É instituto de direito
administrativo”.[9] Afirma
ainda: “Enquanto o benefício da justiça gratuita se limita aos processos,
inclusive cautelares e de preparação de prova, a assistência judiciária apanha
quaisquer atos que tenham de servir ao conhecimento da justiça, como as
certidões e tabeliães. Daí a conveniência de se pedir a assistência judiciária
antes de se ingressar em juízo. Todavia, não se exclui do benefício da justiça
gratuita qualquer processo judicial”.[10]
José Cretella Junior indica: "Benefício da justiça gratuita é o
direito à dispensa provisória de despesas, exercível em relação jurídica
processual, perante o juiz que tem o poder-dever de entregar a prestação
jurisdicional. Instituto de direito pré-processual, a assistência judiciária é
a organização estatal, ou paraestatal, que tem por fim, ao lado da dispensa
provisória das despesas, a indicação de advogado. O instituto é mais do direito
administrativo do que do direito judiciário civil, ou penal”. Continua:
“Denomina-se assistência judiciária o auxílio que o Estado oferece – agora,
obrigatoriamente – ao que se encontra em situação de miserabilidade,
dispensando-o das despesas, e providenciando-lhe defensor, em juízo (...). A
assistência judiciária abrange todos os atos que concorram, de qualquer modo,
para o conhecimento da justiça – certidões de tabeliães, por exemplo –, ao
passo que o benefício da justiça gratuita é circunscrito aos processos,
incluída a preparação da prova e as cautelares”.[11]
Nas lições de Pontes de Miranda e Cretella Junior, embora já apontem a
existência de uma diferenciação entre “assistência judiciária” e benefício da
“justiça gratuita”, estes ainda analisam o tema a partir de seus reflexos, no
que concerne propiciar mecanismos para a população carente solucionar suas
lides, em especial ao acesso aos Tribunais, à disputa processual. Ambos não
mencionam a expressão assistência jurídica integral e gratuita, visto tratar-se
de inovação trazida pela vigente Constituição Federal brasileira.
Quanto à inserção da assistência jurídica integral e gratuita no rol dos
direitos e garantias fundamentais da Constituição Federal brasileira de 1988,
Manuel Gonçalves Ferreira Filho chegou a questionar a importância do instituto
em estudo a ponto de elevá-lo à garantia constitucional, ao expor:
"Entretanto, cabe indagar se a matéria é de tal relevância que deva ser
incluída entre os direitos e as garantias individuais. Colocando-se no mesmo
artigo, lado a lado, direitos como o da expressão do pensamento e o da
assistência judiciária, corre-se o risco de desvalorizar o primeiro,
supervalorizando-se o segundo"[12].
Anselmo Prieto Alvarez, em defesa da importância da ação do constituinte
brasileiro em inserir a assistência jurídica integral e gratuita,
geograficamente onde se encontra, na Constituição Federal brasileira, afirma:
“Num país onde temos como regra a pobreza de sua população, poderíamos afirmar
que a assistência jurídica gratuita, em sua real acepção, é por certo tão
importante como a liberdade de expressão, vez que, o que adiantaria termos
assegurada tal liberdade, se caso violada, o lesado, sendo hipossuficiente,
nada pudesse fazer para rechaçá-la”.[13]
Afirmando na sequência que o instituto da assistência jurídica integral e
gratuita é verdadeiro sustentáculo do Estado Social Democrático de Direito.
Foi Kazuo Watanabe, ao antever a importância do instituto da assistência
jurídica para a população carente, quem sugeriu a adoção da terminologia
"assistência jurídica" ao invés de "assistência
judiciária", que acabou por ser utilizada pela vigente Constituição
Federal brasileira, defendendo que: "A expressão ‘assistência judiciária’
pode ser entendida em várias acepções, e a amplitude do serviço que venha a ser
instituído para sua prestação será maior ou menor segundo o conceito adotado.”
Continua: “Na acepção restrita significa assistência técnica prestada por
profissional legalmente habilitado, que é o advogado, em juízo. Quando muito,
assistência prestada na fase pré-processual, mas sempre com vistas a uma
demanda e à pessoa com conflito de interesses determinado. Na acepção ampla tem
o sentido de assistência jurídica em juízo ou fora dele, com ou sem conflito
específico, abrangendo, inclusive, serviço de informação e de orientação, e até
mesmo de estudo crítico, por especialistas de várias áreas do saber humano, do
ordenamento jurídico existente, buscando soluções para sua explicação mais
justa e, eventualmente, sua modificação e, inclusive, revogação. Mais adequado
seria chamar-se serviço de semelhante amplitude de ‘assistência jurídica’, ao
invés de ‘assistência judiciária’."[14]
Rosa Marcacini desenvolve uma ideia de assistência jurídica gratuita mais
próxima da atual acepção constitucional: "A Constituição Federal de 1988,
em seu artigo 5º, inciso LXXIV, inclui entre os direitos e garantias
individuais a assistência jurídica integral e gratuita. Utiliza a Lei Maior um
terceiro conceito, que também não deve ser confundido como sinônimo de
assistência judiciária ou justiça gratuita. Por justiça gratuita deve ser
entendida a gratuidade de todas as causas e despesas, judiciais ou não,
relativas a atos necessários ao desenvolvimento do processo e à defesa dos
direitos do beneficiário em juízo. O benefício da justiça gratuita compreende a
isenção de toda e qualquer despesa necessária ao pleno exercício dos direitos e
das faculdades processuais, sejam tais despesas judiciais ou não. Abrange,
assim, não somente as custas relativas aos atos processuais a serem praticados
como também todas as despesas decorrentes de efetiva participação na relação
processual”. Continua: “A assistência envolve o patrocínio gratuito da causa
por advogado. A assistência judiciária é, pois, um serviço público organizado,
consistente na defesa em juízo do assistido, que deve ser oferecido pelo
Estado, mas que pode ser desempenhado por entidades não-estatais, conveniadas
ou não com o Poder Público. (...) Por sua vez, a assistência jurídica engloba a
assistência judiciária, sendo ainda mais ampla que esta, por envolver também
serviços jurídicos não relacionados ao processo, tais como orientações
individuais ou coletivas, o esclarecimento de dúvidas, e mesmo um programa de
informação a toda a comunidade”.[15]
Essa ideia tem a finalidade de atender o que observou Anselmo Prieto
Alvarez: “a falta de consciência a respeito dos próprios direitos e a
incapacidade de transformar sua demanda em políticas públicas são combatidas
com o trabalho de esclarecimento e organização popular para defesa de seus
interesses”.[16]
A assistência jurídica integral e gratuita tem o alcance de propiciar ao
jurisdicionado carente de recursos financeiros a garantia de ser informado e
informar-se acerca dos seus direitos e a real amplitude dos mesmos; de poder
utilizar-se de profissional habilitado para patrocinar seus interesses em Juízo
ou fora dele; de isentar-se do pagamento de quaisquer ônus processuais ou
extraprocessuais na salvaguarda jurídica de seus interesses.
Pelo que foi exposto, não é possível aceitar que assistência jurídica
integral e gratuita aos necessitados traduz-se tão-somente em um mero favor
estatal, tão-somente em utilização do Poder Judiciário, ou como apenas
assistência processual, visto tratar-se de um instituto muito mais amplo e
complexo. Traduz-se em um instrumento de acesso, construção e legitimação da
ordem jurídica de um Estado.
Para que se possa alcançar a efetividade da participação de todos os
jurisdicionados na inclusão e construção da ordem jurídica, na concretização
dos princípios democráticos esposados pela vigente Constituição Federal
brasileira, devem-se aceitar como necessitados não só os economicamente pobres,
mas todos aqueles que necessitam de tutela jurídica diferenciada e que se
encontram incapacitados de fazer valer seus interesses de forma individual,
caracterizado como juridicamente hipossuficiente.
Ante todo o exposto, o conceito de assistência jurídica integral e
gratuita que melhor se encaixaria aos princípios constitucionais da vigente
Constituição Federal brasileira é a de Anselmo Prieto Alvarez, como “(...) o
direito público subjetivo da pessoa de ter acesso ao ordenamento jurídico
justo, assim entendido como a viabilização da consultoria jurídica, assistência
postulatória e gratuidade processual, além da extraprocessual, a serem
prestadas pelos poderes constituídos, uma vez comprovada sua insuficiência de
recursos ou ocorrida determinada situação jurídica de impotência individual de
salvaguarda de interesses, que seja de relevância à sociedade.”[17]
Contudo, não nos basta essa ideia de assistência jurídica integral e
gratuita; é preciso ainda lembrar que a conduta do jurisdicionado na sociedade
brasileira é determinada na norma jurídica, a qual compõe a ciência jurídica.
Esta, por sua vez, tem como objeto o Direito, conforme ensinamentos de Hans
Kelsen. Ou seja, “na afirmação evidente de que o objeto da ciência jurídica é o
Direito, está contida a afirmação – menos evidente – de que são as normas
jurídicas o objeto da ciência jurídica, e a conduta humana só o é na medida em
que é determinada nas normas jurídicas como pressuposto ou consequência, ou – por
outras palavras – na medida em que constitui conteúdo de normas jurídicas.
Quanto à questão de saber se as relações inter-humanas são objeto da ciência
jurídica, é importante dizer que elas também só são objeto de um conhecimento
jurídico enquanto relações jurídicas, isto é, como relações que são
constituídas através de normas jurídicas. A ciência jurídica procura aprender o
seu objeto ‘juridicamente’, isto é, do ponto de vista do Direito. Aprender algo
juridicamente não pode, porém, significar senão aprender algo como Direito, o
que quer dizer: como norma jurídica ou conteúdo de uma norma jurídica, como
determinado através de uma norma jurídica”.[18]
A assistência jurídica gratuita não decorre simplesmente do que está
inscrito no Direito, mas da necessidade de a sociedade impor tal preceito como
conduta, não somente dos cidadãos, mas também do Estado, surgindo daí o anseio
social de normatização de tal conduta.
Miguel Cid Cebrian contribui para este raciocínio ao afirmar que o
conceito da instituição do “benefício de pobreza”, “justiça gratuita” ou
“assistência jurídica” é utilizado indistintamente para definir dois aspectos
diferentes. Por um lado trata-se de um direito, que surge cada vez mais com
maior clareza, ante a sua consolidação e reconhecimento constitucional. No
entanto, também se considera como um procedimento ou mecanismo processual para
alcançar a efetividade do direito, sem cuja garantia não existiria propriamente
como direito. Assim, pode-se vislumbrar dupla conceituação, ou sobreposição, que
coincide com a própria essência do Direito Processual. Com efeito, a
instituição dispõe um direito, enquanto conjunto de normas para exercer a ação
processual, que, por sua vez, por meio do processo, reconhece, tutela, habilita
e garante a consecução, tanto do próprio direito de ação, como do direito
subjetivo, que em cada caso concreto se postula.[19]
Cumpre também analisar a natureza da assistência jurídica integral e
gratuita como norma, pois a natureza de um objeto ou coisa também é importante
para se ter a sua real compreensão.
De Plácido e Silva ensina: “Natureza. Na terminologia jurídica assinala,
notadamente, a essência, a substância, ou a compleição das coisas. Assim, a
natureza se revela pelos requisitos ou atributos essenciais e que devem vir com
a própria coisa. Eles se mostram, por isso, a razão de ser, seja do ato, do
contrato ou do negócio. A natureza da coisa, pois, põe em evidência sua própria
essência ou substância, que dela não se separa, sem que a modifique ou a mostre
diferente ou sem os atributos, que são de seu caráter. É, portanto, a matéria
de que se compõe a própria coisa, ou que lhe é inerente ou congênita”.[20]
Miguel Cid Cebrian observa: “O primeiro dilema que se coloca é o de
delimitar se se trata de um direito per
se, ou que simplesmente se reconhece, ou, melhor, se se trata de um
privilégio que se concede em função de condições legais”.[21]
Afirma ainda: “Encarado como uma ajuda, ou um benefício para quem precisa, nada
impede a sua consideração como direito, vez que definitivamente trata-se de um
direito que possibilita o exercício de outro direito, ainda que seja em
expectativa, pois constitui o fundo da pretensão e, de qualquer forma,
viabiliza o direito básico à já citada tutela jurisdicional efetiva, que
constitui o direito-marco, fundamental para possibilitar o exercício dos
direitos adjetivos ou substantivos imersos em todo processo judicial”.[22]
Anselmo Prieto Alvarez, em uma análise rápida, entende que caberia falar
no instituto da assistência jurídica gratuita como privilégio, uma vez que tal
gratuidade não seria concedida a todos os cidadãos, mas a uma parcela deles,
qual seja, àqueles que se encontram na condição de necessitados. Contudo, na
sequência, afirma: “O Direito deve representar os anseios da regulação da vida
em sociedade, retirando o debate moral acerca de determinadas situações
jurídicas. De modo que, muito embora uma das características da norma jurídica
seja exatamente a sua generalidade, bem sabemos que concretamente esse adjetivo
nunca pode ser entendido de forma absoluta, até mesmo para dar efetividade ao
acima mencionado. Portanto, qualificar o instituto da assistência jurídica
gratuita como privilégio significaria estar utilizando o Direito de forma
equivocada, pois o ordenamento jurídico não pode dar guarida a positivação de
privilégios, embora por razões políticas nem sempre louváveis possa ocorrer”.[23]
O caminho para se chegar à natureza da assistência jurídica integral e
gratuita é a constatação do fato da existência de uma população pobre e outros
segmentos da sociedade, como sujeito individual ou coletivo de direitos e
obrigações, de não reunirem condições de fazer valer os seus direitos quando
envolvidos em uma lide concreta, mitigando o acesso ao ordenamento jurídico e
aos órgãos de distribuição de Justiça, não somente o Poder Judiciário.
Deve-se levar em conta que o fenômeno da pobreza vem atrelado com o pouco
grau de instrução da população carente, que sequer tem discernimento para
avaliar se teve ou não um direito negado ou violado, quanto mais conhecer os
mecanismos legítimos para fazer valer sua condição de ser humano.
Portanto, é possível afirmar que o instituto da assistência jurídica
integral e gratuita assume natureza de direito, não somente do indivíduo ou da
coletividade pobre, nem tampouco de outros segmentos frágeis da sociedade, mas
dela como um todo, na medida em que o instituto em questão é forma de
efetivação do acesso à ordem jurídica, sendo verdadeiro sustentáculo do Estado
Democrático de Direito.
É importante dizer ainda que, da mesma forma que há direito, há também a
obrigação que lhe é correspondente, a qual, no caso do instituto da assistência
jurídica gratuita, é do Estado, que deve adimpli-lo por meio de seus poderes
constituídos, sem que possa escusar-se do seu cumprimento ou imputar o dever a
outrem, principalmente pelo fato de o Estado deter o monopólio jurisdicional.
Quanto à condição do instituto da assistência jurídica gratuita como
direito material ou processual, nos socorremo-nos novamente dos ensinamentos de
Miguel Cid Cebrian, que desenvolve o seguinte pensamento: “Para esta finalidade
o posicionamento mais uniforme é desjudicializar o benefício e submetê-lo a um
órgão não judicial, sem prejuízo do controle que jurisdicionalmente seja
estabelecido. Sendo assim, neste momento de reflexão a natureza jurídica da
Instituição encontra-se em um período de profunda crise evolutiva, que pretende
adequá-la às necessidades reais da nossa sociedade, tal e como acontece em
muitos países vizinhos. (...) não há dúvida alguma que a natureza prevalente
tem sido a adjetiva, por figurar como um incidente do processo habilitante para
o processo principal, que, segundo a legislação atual, não se suspende,
seguindo seu trâmite normal, ao contrário do que acontecia antes da reforma da
Lei Processual Civil operada pela Lei n. 34/1984”.[24]
No entanto, embora possível afirmar que este direito e garantia
fundamental, de índole constitucional, tenha natureza processual assim como
outros preceitos contidos também no artigo 5º da vigente Constituição Federal,
como: o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa, e outros mais,
essa não é a melhor solução, pois a assistência jurídica integral e gratuita
não se resume ao benefício da “gratuidade judiciária”, sendo muito mais amplo,
alcançando a consultoria jurídica e o direito ao acesso à ordem jurídica.
Portanto, embora possamos constatar que a assistência jurídica integral e
gratuita ora traz reflexos materiais, ora processuais, acima de tudo tem como
escopo maior garantir o acesso dos segmentos menos favorecidos da sociedade ao
ordenamento jurídico, seja por meio de simples esclarecimento ou do efetivo
acesso ao Judiciário; pelo exercício do direito de ação ou de defesa, trazendo
ao objeto em análise natureza mista, ou seja, com contornos substantivos e
adjetivos, pois o adjetivo composto “jurídica
integral” possui dupla finalidade, buscando transcender o Juízo, ou seja,
“jurídica”, efetivando-se onde estiver o Direito, e “integral”, não se
esgotando na parte, na unidade, mas abrangendo e integrando as seções e facetas
em um todo. Desta forma, constitui um direito que possui natureza jurídica híbrida, material e processual.
Ao longo do texto, por diversas vezes utilizamos a terminologia instituto
ao nos referirmos à assistência jurídica integral e gratuita. Deste modo, cabe
delinearmos também a definição de instituto.
Aurélio Buarque de Holanda Ferreira expõe: "Instituto: (...)
Entidade jurídica instituída e regulamentada por um conjunto orgânico de normas
de direito positivo: o instituto do pátrio poder, do fideicomisso, da
posse."[25]
De Plácido e Silva preleciona: "Instituto. Na terminologia jurídica,
é a expressão usada para designar o conjunto de regras e princípios jurídicos
que regem certas entidades ou certas situações de direito. E com esta
compreensão dizemos: instituto cambial, instituto da falência, instituto da
hipoteca, instituto da servidão, instituto da tutela, etc."[26]
Caio Mario da Silva Pereira observa: "Há leis que ao mesmo tempo
definem os direitos e disciplinam a forma de sua realização. Conjugam o
conteúdo material e a estrutura formal, apresentando simultaneamente dispositivos
de direito material ou teórico e de direito formal ou processual. A estes
institutos, em que se alinham as disposições substanciais ao lado das
processuais, dá-se o nome de institutos unos; por exemplo a Lei de Falência ou
instituto falimentar, em que se articulam as normas definidoras do estado de
falência, os terceiros, em que se capitulam os crimes falimentares etc., e ao
mesmo tempo se especifica a forma do pedido e de defesa, o rito de habilitação
dos créditos, o procedimento, em suma."[27]
Portanto, a assistência jurídica gratuita não pode ser entendida
exclusivamente como regramento emanado só da Constituição Federal brasileira;
verifica-se, no ordenamento jurídico pátrio, que a assistência jurídica
integral e gratuita se encontra regulamentada por uma série de dispositivos
legais espalhados nos diversos ramos do direito, tanto de caráter material como
processual, o que leva a caracterizá-la como instituto, não uno, como indica
Caio Mario da Silva Pereira, pois não a encontramos inserida em uma única lei
ou norma jurídica de forma exaustiva.
Reforçando o que foi exposto, encontramos o regramento da assistência
jurídica gratuita nos termos dos artigos 5º, inciso LXXIV e 134, ambos da
vigente Constituição Federal brasileira; nas Constituições do estados membros;
na Lei Orgânica da Defensoria Pública da União e dos estados membros, e ainda,
da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, que regulamenta a carreira
pública responsável pela execução e prestação da assistência judiciária e
consultoria jurídica, as quais subsidiariamente são realizadas pela OAB
(conforme consta dos preceitos normativos contidos nos arts. 22, caput e §1º, 34, inc. XII e 36, inc. I,
todos do Estatuto da OAB e dos arts. 38 e 40, do Código de Ética e Disciplina
de 13 de fevereiro de 1995); e pela Lei n. 1.060/50, que trata do benefício da
justiça gratuita, assim como vários regimentos internos de tribunais. E, ainda,
no Código de Defesa do Consumidor, que se preocupa em regular a assistência
jurídica gratuita, na sua conceituação mais ampla, considerando-a como
instrumento da execução da Política Nacional das Relações de Consumo (art. 5º,
inc. I) , assim como tratando-a como direito básico do consumidor (art. 6º,
inc. VII), lembrando que, em ambos os casos, as disposições legais regulamentadoras
são de natureza principiológica, norteadoras de todo o sistema de consumo.
Constatamos assim, no direito pátrio, a existência de um conjunto de
regras e princípios jurídicos que regem a assistência jurídica integral e
gratuita, elevando-a ao status de
instituto jurídico.
Assim, assistência jurídica integral e gratuita é um instituto jurídico que consiste na atividade-dever do Estado em propiciar ao jurisdicionado, juridicamente hipossuficiente, o direito material-processual de utilizar, de forma gratuita, o serviço público do Estado de: consulta e orientação jurídica; da utilização dos serviços de advogados na defesa judicial ou extrajudicial de seus interesses; na utilização de serviços de auxiliares da justiça; na isenção e dispensa de pagamento de custas, taxas e despesas processuais e extraprocessuais, necessárias à defesa de seus interesses em juízo ou em órgãos administrativos; e, ainda, na dispensa do pagamento das despesas extraprocessuais que não se exaurem no processo, para a efetivação do direito reconhecido pelo Estado, em verdadeiro instrumento de acesso à ordem jurídica do Estado, um dos sustentáculos do Estado Democrático de Direito.
[1] Diniz. Maria Helena. Curso
de direito civil brasileiro. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 1993. v. 1, p.19.
[2] DE PLÁCIDO E SILVA, Oscar
José. Vocabulário jurídico. 11. ed.
Rio de Janeiro: Forense, 1989. v. 1, p. 484.
[3] Vilanova, Lourival. Sobre o conceito
do direito, p.15-16, apud Diniz,
Maria Helena. Compêndio de introdução à
ciência do direito, p. 318.
[4]
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e
aplicação do direito. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1988, p.103
[5]
MAXIMILIANO, C. Idem, p. 104-105
[6] FERREIRA, Pinto. Comentários à Constituição brasileira.
São Paulo: Saraiva, v. 1, 1989, p. 214.
[7] Theodoro Junior, Humberto. Curso de Direito Processual Civil, pág.
104; Antônio José de Souza Levenhagem, Comentários
ao Código de Processo Civil, p.52; Pedro Batista Martins, Comentários ao Código de Processo Civil,
p. 251, entre outros que utilizam as expressões “justiça gratuita”,
“assistência judiciária gratuita” e “assistência jurídica integral e gratuita”
como sinônimas.
[8]
MARCACINI, Augusto Tavares Rosa. Assistência
jurídica, assistência judiciária e justiça gratuita. Rio de Janeiro:
Forense, 1996, p. 29.
[9] PONTES DE MIRANDA,
Francisco Cavalcanti. Comentários à
Constituição de 1967. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1970. p. 641.
[10] PONTES
DE MIRANDA, F. C. Idem. Ibidem.
[11]
CRETELLA JUNIOR, José. Comentários à
Constituição brasileira de 1988. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1991. v. 1, p. 819-820.
[12]
CRETELLA JUNIOR, J. Idem, p 85.
[13] Alvarez. Anselmo Prieto. Uma moderna concepção de assistência jurídica
gratuita. In: Revista da Procuradoria
Geral do Estado de São Paulo. São Paulo. n.º 53, jan/jun 2000.
[14]
WATANABE, Kazuo. Assistência judiciária e o juizado especial de pequenas
causas. In: Revista dos Tribunais,
São Paulo: RT, n. 617, 1987. p 250.
[15] Marcacini, A. T. R. Obra citada, p.
30-33.
[16] Alvarez. A. P. Obra citada, p. 35.
[17] Alvarez. A. P. Idem. Ibidem.
[18] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João
Baptista Machado. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991. p 77.
[19]
CEBRIAN, Miguel Cid. La justicia gratuita: realidad y perspectivas de un
derecho constitucional. Pamplona:
Arazandi, 1996. p 84.
[20] DE
PLÁCIDO E SILVA, O. J. Obra citada, p. 230.
[21]
CEBRIAN, M. C. Obra citada, p 85.
[22]
CEBRIAN, M. C. Obra citada, p 86-87.
[23] Alvarez. A. P. Obra citada, p. 39.
[24]
CEBRIAN, M. C. Obra citada, p. 94-95.
[25] FERREIRA, Aurélio Buarque de
Holanda. Obra citada, p 953.
[26] DE
PLÁCIDO E SILVA, O. J. Obra citada, v. 2, p. 487.
[27] PEREIRA, Caio Mario da
Silva. Instituições de direito civil. 9.
ed. Rio de Janeiro: Forense, 1985. v. 1. p.78.
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